Juncos e livros

 Juncos e livros

Imagem: Canva

Dia destes, em meio a uma reunião de trabalho cuja pauta eu conseguia acompanhar em paralelo (mulheres têm no cérebro departamentos separados, que permitem tratar de assuntos simultâneos), questionei-me sobre a razão de eu gostar de escrever “abobrinhas” em crônicas (como essa).

Por coincidência, estava em plena leitura (às noites, não durante reuniões) de “O infinito em um junco – A invenção dos livros no mundo antigo”, da espanhola Irene Vallejo. É incrível pensar como a humanidade, há milhares de anos, começou a rabiscar garranchos com significados, perenizando pensamentos na escrita – verdadeira revolução! O livro de Vallejo mostra, como num romance de aventura, a pretensão dos reis e faraós de reunir todo o conhecimento do mundo, enviando seus cavaleiros em perigosas missões com o objetivo de comprar papiros para suas bibliotecas. A Biblioteca de Alexandria, construída no século III A.C., tendo funcionado durante quase 600 anos (a despeito de ataques, acidentes naturais e até censura), foi um dos grandes exemplos.

Livros eram privilégio dos mandachuvas, e não podiam ser consultados por qualquer um (aliás, a grande maioria nem sabia ler). Apenas a elite política e religiosa tinha acesso. Mas então Gutenberg, no século XV, promoveu a revolução da prensa, permitindo a multiplicação e a disseminação dos papéis escritos. Foi assim que, junto com a ampliação do acesso às escolas, se formou uma legião de maníacos por livros (entre os quais me incluo), alguns dos quais acumulam mais exemplares do que conseguem ler (também é o meu caso).

Vallejo menciona as “maldiçoes” lançadas, ao longo da história, contra os ladrões de livros, como a gravada na biblioteca do Monastério de San Pedro de las Puellas, em Barcelona: “Aquele que rouba ou pede um livro emprestado e não o devolve ao dono, que sua mão se transmute em serpente e o dilacere. Que fique paralisado e todos os seus membros sejam condenados. Que desfaleça de dor, implorando misericórdia aos berros, e que nada alivie seus sofrimentos até perecer. Que os vermes de livros corroam as suas vísceras, tal como faz o remorso que nunca cessa. E quando for, finalmente, para o castigo eterno, que as chamas do inferno o consumam para sempre”. Uau! Conheço muita gente que ficaria em maus lençóis por reter um simples livro. Sou o oposto: depois de ler, passo adiante os exemplares, na firme convicção de que livro é pra ser lido, e não para descansar em estantes.

Mas, divago. Voltando à vaca fria: já tive vontade de ser mais lida – e para tanto, precisaria atingir um patamar de qualidade que talvez nunca consiga. Já não tenho essa pretensão. Quero fazer exatamente o que faço: ter plateia reduzida, falar somente para os conhecidos – em especial nesta nossa época de enxovalhamentos e cancelamentos digitais. É essa minha zona de conforto.

Então, por que escrevo minhas mal traçadas linhas? Porque gosto, claro (assim como gosto de ler). Mas se for pensar num motivo específico, e se não é pela vaidade da fama, por que seria? Ainda ouvindo, no paralelo, os debates da reunião que mencionei no início, concluí: trata-se de uma vaidade mais restrita, de cunho afetivo. Quero que, com minhas “abobrinhas”, meus netos se lembrem dos momentos que vivemos juntos, de como são amados, e de como esses momentos são importantes para mim.

Parece pouca ambição, mas não é: gostaria que esses moleques (os atuais e os/as que ainda podem vir) saibam como vejo o mundo – mesmo que discordem do que penso. Aliás, se discordarem com bons argumentos, melhor ainda!

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É mãe, avó e executiva do Grupo Folha e do Grupo UOL.

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