A reforma da natureza

 A reforma da natureza

Crédito: Eliseth Ribeiro Leão

Um dos méritos do naturalista Charles Darwin, autor de “A origem das espécies” e de outros livros, foi demonstrar, no século 19 – quando a explicação corrente para a existência dos homens, da fauna e da flora era o criacionismo –, que os seres vivos se transformam lentamente, pelo processo de seleção natural, que privilegia a reprodução dos indivíduos mais adaptados aos desafios do meio ambiente (os menos adaptados tendem a desaparecer), e pela transmissibilidade de modificações aos descendentes (seleção sexual).

Falamos em transformação lenta porque é lenta mesmo: milhares ou milhões de anos, em certos casos. Nós mesmos, humanos, temos exemplos em curso em nosso próprio corpo: os dentes do siso, que tiveram utilidade no passado, agora só servem para criar problemas, e muitas vezes precisam ser extraídos. Muitos já estão até nascendo sem esses estorvos. O apêndice é outro item do corpo que, parece, já teve papel relevante, mas atualmente serve mais para inflamar e precisar ser retirado em cirurgia.

Não apenas a natureza, mas os próprios homens são capazes de promover modificações em seres vivos através de seleção artificial, que direciona características específicas a serem privilegiadas na reprodução de uma espécie. Darwin fazia experimentos com pombos. Atualmente se usa seleção natural para aumento de produção de carne, de leite, de frutas etc. A ação voluntária de seleção também pode moldar novas raças de cachorros ou cavalos, por exemplo.

Essas conjecturas fizeram-me lembrar da Emília, a boneca irreverente do Sítio do Picapau Amarelo, criada por Monteiro Lobato e leitura obrigatória em minha infância. Em “A reforma da natureza”, Emília quer fazer, de uma hora para outra, o que a natureza leva milhares ou milhões de anos (se é que a natureza faria as barbaridades da Emília…). Ela achou injustificável uma jabuticabeira carregar frutas tão pequenas, enquanto as abóboras são sustentadas por talos. Então, trocou tudo de lugar! E fez as laranjas já descascadas nas árvores, para evitar sujeira de sumo nas mãos de quem as chupasse. Colocou a cauda no meio das costas da vaca (permitindo-lhe espantar as moscas do corpo todo), e alocou as tetas nas laterais, para que os bezerrinhos pudessem mamar enquanto, do outro lado, ocorreria a ordenha. E assim por diante…

Emília também queria aumentar o número de olhos das pessoas: quatro na cabeça (ao norte, sul, leste e oeste), dois nos dedões dos pés (para evitar topadas) e um em cada dedo minguinho – já que este dedo é um vagabundo que “não faz nada, e fica o tempo todo assistindo ao trabalho dos outros”. Com olhos, o minguinho seria útil para a pessoa “enxergar numa cova de dente ou se há cera no ouvido”.

Recordando essas maluquices da Emília, propus aos meus netos (na época, com 7 e 5 anos) uma brincadeira simples e engraçada: rabiscamos, numa folha de papel, um rosto sem nada (parecendo um ovo); depois desenhamos, em outra folha, olhos, nariz, boca, orelhas e cabelos, recortando tudo. Cada um podia montar o rosto a seu gosto, explicando a razão de cada troca. Por exemplo: um dos meninos colocou a boca acima do nariz, para evitar que ranho escorra sobre ela (argh!). Orelhas foram para a parte superior da cabeça, a fim de melhorar a audição (mas lembramos do inconveniente dessa solução se chover…). Um de nós propôs aos humanos dentição como a dos tubarões: os dentes se desprendem facilmente da arcada e se regeneram. Adeus escovações e visitas aos dentistas!

Mas a conclusão final do trio foi de que a melhor mudança seria no interior da cabeça, para que não prosperassem neurônios e sinapses que levam à negação da Ciência!

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É mãe, avó e executiva do Grupo Folha e do Grupo UOL.

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