Nicoly: trans preta, periférica, resiliente e pioneira de Paraisópolis

Por Ana Victória

Meu nome é Ana Victória, mas sou conhecida como Mc Trans. Moro na comunidade de Paraisópolis há cinco anos, e minha primeira amiga por aqui foi a Nicoly Scofany, que também é uma mulher trans. Aproveitando que Janeiro é o mês da visibilidade trans, gostaria de compartilhar uma experiência vivida não só por mim, ou pela minha amiga Nicoly, mas também por várias mulheres trans.

Sempre fui muito bem tratada por todos. Algumas pessoas me paravam na rua para me falar o quanto achavam Nicoly e eu bonitas, mas o que me chamou atenção foi que algumas diziam não se aproximar dela por pensarem que ela era antipática. Então, passei a observar e percebi que, na verdade, não era antipatia, mas, sim, que ela estava sofrendo transfobia e racismo.

As pessoas achavam a Nicoly muito antipática, sempre de cara fechada e comentavam isso comigo. Conforme eu andava com ela, eu percebia muitos sorrisos direcionados a minha pessoa, e isso começou a incomodar, afinal, nós duas somos trans. Com o passar do tempo, comecei a perceber que ela não passava apenas por transfobia por ser uma mulher trans, mas também por racismo, por ser uma mulher trans negra.

Certa vez, pegamos um Uber e o motorista, que também era negro, fez questão de maltratar a Nicoly na minha frente. Como andávamos sempre juntas, comecei a reparar que outros homens negros faziam de tudo para maltratar e discriminá-la. Foram anos de amizade até eu perceber que a violência era muito maior.

Certa vez, eu a questionei sobre o assunto perguntando por quê ela não se comunicava com todo mundo de maneira tão aberta e, nessa altura eu pude perceber que ela foi uma Trans Negra que, para sobreviver como uma das primeiras mulheres Trans a se transacionar na comunidade, precisou criar uma barreira. Com cara fechada, precisava mostrar que não tinha medo de ninguém para não apanhar. Ao fazer isso, era como se ela estivesse dizendo para os homens negros o seguinte: “eu estou pronta para a briga, me deixa passar!”

Outro momento foi quando fui fazer um trabalho de maquiagem no interior de São Paulo e a motorista não cumprimentou a Nicoly e muito menos outra garota negra cisgênero. Ela me colocou no banco da frente e ignorou o que as outras duas meninas estavam falando, e nesse dia tive o maior ‘baque’ na minha cabeça. As pessoas não compreendem a dor do outro e isso deveria ser mais forte na comunidade. Quando uma mulher trans mora dentro de uma favela sendo negra, ela acaba sofrendo mais por isso, pois todos os outros moradores negros também têm preconceito pelo simples fato dela ter sido um homem, até porque nunca foi um, na real ela fez sua transição para uma mulher negra e por conta disso, eles pensam que é uma “traição de cor” e que não é possível uma pessoa que nasceu com o sangue preto ir lá e trair o sangue se vestindo de mulher. Isso é um preconceito, uma transfobia absurda misturada com racismo, e essas pessoas, muitas vezes, acabam sendo violentas com as mulheres trans, periféricas e negras.

Então, esse texto é para levantar uma reflexão de que nem sempre aquela pessoa que não cumprimenta todo mundo ou está com a cara fechada é uma pessoa antipática, às vezes ela está com medo e se protegendo para sobreviver.

Com essa mensagem, eu gostaria de apresentar a vocês, para quem não teve a oportunidade de conhecer, a Nicoly, uma mulher transexual que luta há muitos anos pela sua sobrevivência, uma mulher que ajuda sempre  todos os seus amigos, incluindo a mim, quando vim morar na comunidade. Ela é uma mulher generosa, uma ótima cozinheira, uma mulher cheia de sonhos e talentos, e que teve que passar por muitas coisas tristes nessa vida, mas nunca perdeu seu sorriso no rosto, mas claro, esse sorriso apenas abre para quem merece.

Uma mulher que, além de forte, é muito bonita que traz para nós um ensinamento de vida para ser quem é. Ela nunca desistiu, então a força e a garra vêm junto ao seu nome. Lembrando que Nicoly também tem uma profissão, trabalhou com grandes artistas como assessora, é talentosa, criativa e, principalmente, militante.

Ana Victória 

Conhecida como Mc Trans, é mulher trans, mãe e militante. Atua como cantora de funk e apresentadora do quadro “Me ajuda Trans”, no programa HERvolution, na Redetv.

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